“Melnickstão”: O fenômeno da especulação imobiliária em Porto Alegre
A capital gaúcha, Porto Alegre, recebeu nos últimos tempos um novo apelido dos internautas: Melnickstão. O termo, que já foi empregado pelos deputados estaduais Matheus Gomes (PSOL) e Leonel Radde (PT), é uma união do nome da empresa imobiliária Melnick com o sufixo “istão”, que significa “território de” em uma série de idiomas. A frequência com que é possível ver placas com o logotipo da empresa nas ruas da cidade é o bode expiatório para esse neologismo, que expressa um processo facilmente observável: as intensas mudanças na configuração urbana das regiões centrais de Porto Alegre.
A proposição de planos diretores específicos para as regiões do Quarto Distrito e do Centro Histórico só aumenta a insatisfação de opositores da atual gestão porto-alegrense. As mudanças no planejamento urbano da capital, embora só agora evidenciadas, remetem a um processo que já acontece há mais de 15 anos. Traçando esse histórico, podemos entender as raízes do processo de “modernização” de Porto Alegre e sua relação com o fenômeno da especulação imobiliária.
O Futebol na Câmara de Vereadores
É possível começar a rastrear as grandes mudanças no cenário urbanístico da metrópole gaúcha a partir de duas movimentações da dupla grenal. Fora dos campos, os times estavam por trás de dois projetos de lei em votação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. No dia 29 de dezembro de 2008, uma segunda-feira amontoada entre o Natal e o Ano-Novo, foi aprovado na Câmara de Vereadores de Porto Alegre o projeto de lei complementar do Executivo que definiria o regime urbanístico da área relativa à Arena Multiuso — que se tornou , a partir de então, o atual estádio do Grêmio Football Club. Nessa mesma votação, foi alterado o regime que tratava do terreno do Estádio Olímpico Monumental, antiga casa do clube.
A concessão dessa área à OAS Empreendimentos RS, construtora porto-alegrense, afetou a vida de milhares de moradores dos arredores do agora obsoleto estádio gremista, que foram retirados de suas casas. O placar, de 24 votos favoráveis contra 9 contrários e uma abstenção, dividiu as atenções com o de outro projeto aprovado no mesmo dia — dessa vez, referente ao rival, o Sport Clube Internacional.
Por unanimidade, os vereadores aprovaram a lei que permitiria que o clube fizesse construções na área localizada entre as avenidas Edvaldo Pereira Paiva e Padre Cacique, em Porto Alegre. O objetivo era adequar o estádio Beira-Rio e seus entornos às exigências da FIFA, para que o local pudesse se qualificar para ser uma subsede da Copa do Mundo de 2014.
De quem é a Orla?
As mudanças na região da orla do Guaíba continuaram: menos de um ano depois, em março de 2009, o projeto imobiliário “Pontal do Estaleiro” foi aprovado por 22 votos favoráveis contra 10 contrários. O empreendimento privado propunha a construção de um shopping center, um hotel, um complexo de saúde ligado ao Hospital Moinhos de Vento e um centro de convenções localizados junto à orla do Guaíba, entre a Fundação Iberê Camargo e o Barra Shopping Sul.
Em uma sessão anunciada com apenas uma hora de antecedência, a votação desobedeceu diretamente a legislação federal que trata das Áreas de Preservação Permanentes (APPs) — áreas protegidas pelo código florestal brasileiro pela sua importância na preservação de recursos hídricos e biodiversidade locais. Após a votação do projeto, o prefeito na época, José Fogaça (MDB), exigiu o referendo universal e obrigatório previsto por lei para projetos do tipo. A solução aplicada pelo líder da Câmara foi uma emenda que alterou esse referendo, que é de responsabilidade do Tribunal Regional Eleitoral e conta com espaços de propaganda em rádio e TV divididas igualitariamente entre os dois lados do debate, para a modalidade Consulta Popular, sem espaços de propaganda. Se o executivo não realizasse tal consulta em 120 dias, o projeto entraria em vigor automaticamente.
Todas essas leis, agora com mais de 10 anos de existência, já foram revertidas em construções reais com grandes impactos nas áreas em que se localizam. Todas elas se relacionam, em algum nível, com o fenômeno que se convencionou a chamar de especulação imobiliária — termo que, apesar do uso recorrente no senso comum, é raramente compreendido de forma correta, tanto em termos de qualidade quanto de extensão.
Ceniriani Vargas da Silva é Coordenadora regional do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM/RS) e também dirige o assentamento 20 de Novembro, que fica localizado no Quarto Distrito, em Porto Alegre. Em entrevista, ela comentou os efeitos desse processo de revitalização da cidade.
O que é “Especulação Imobiliária”
De acordo com Cândido Campos Filho, doutor em Arquitetura e Urbanismo, quando falamos sobre especulação imobiliária estamos tratando sobre a forma pela qual “os proprietários de terra recebem uma renda transferida dos outros setores produtivos da economia, especialmente através de investimentos públicos na infraestrutura e serviços urbanos.”
Esse processo de distribuição coletiva, com esforços públicos indo em direção a uma apropriação privada dos lucros, dá origem a diversos problemas relacionados com o processo cada vez mais acelerado de urbanização e reorganização das grandes cidades. O encarecimento dos terrenos nas áreas atingidas pela especulação imobiliária aumenta os custos de vida dos moradores locais, como o aluguel e IPTU, obrigando as pessoas de classe social mais baixa a se retirarem das áreas centrais da cidade e migrarem para a periferia. Este fenômeno, conhecido como “gentrificação”, aumenta as distâncias entre a moradia e o local de trabalho destas pessoas, amplificando a dificuldade de deslocamento na cidade.
Com a criação destas zonas periféricas — agora os novos “espaços mais pobres” da cidade — as áreas antes desvalorizadas passam a ser, por comparação, mais elitizadas e, portanto, mais competitivas. Consequentemente, os valores dos seus terrenos também aumentam, num efeito dominó. Através da melhoria de áreas impulsionadas pelos incentivos do Estado, que recebem um investimento na infraestrutura desproporcional à utilidade pública proporcionada, outras áreas são adicionadas aos novos espaços periféricos — isso resulta em cidades desequilibradas, onde as áreas com mais investimento público são subpovoadas e vice-versa.
Uma das ferramentas governamentais para evitar esse problema é o IPTU progressivo no tempo, que permite ao poder público sobretaxar imóveis que não estiverem cumprindo sua função social, subaproveitando áreas com boa infraestrutura. Em Porto Alegre, em agosto de 2018, o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/RS), Rafael Passos, propôs esse modelo contra o projeto de revisão da planta de valores do IPTU de Porto Alegre apresentado pela prefeitura, já sob o mandato de Sebastião Melo. A proposta aprovada pelo executivo foi na direção oposta: a alíquota dos terrenos, imóveis onde não há construção, seria a com maior redução entre os três tipos imobiliários. Passos declarou que o formato aprovado “incentiva a especulação imobiliária em detrimento do comércio e do setor produtivo, que são atividades essenciais para Porto Alegre”.
O Quarto Distrito
Quatro anos mais tarde, em agosto de 2022, dezenas de famílias acompanhavam na Câmara de Vereadores, através de um vidro à prova de som, uma votação que definiria a trajetória de suas vidas: saberiam se seriam retirados de suas casas ou não. Duas mil famílias fazem parte das 19 comunidades irregulares que existem na região compreendida entre os bairros Floresta, Humaitá, Navegantes, São Geraldo e Vila Farrapos — popularmente referida como “o Quarto Distrito”.
A ameaça de despejo e remoção vem dos regramentos urbanísticos específicos fora do debate do Plano Diretor aprovados pela Câmara, que também liberou uma série de descontos e isenções de impostos para empreendedores interessados em investir na região.